A Saúde em estado de alerta
O ano de 1949 ficará definitivamente marcado na história do povo baiano. Em um dia como outro, 70 pessoas, algumas a pé e outras amparadas em carroças, avançavam em um emblemático cortejo pelas ruas da Cidade Baixa de Salvador. À frente, uma freira guiava homens e mulheres, entre os quais idosos e crianças, que compartilhavam na bagagem de suas vidas a triste sina da miséria, da desnutrição e da tuberculose. Assim como a cena descrita, seu destino era também inusitado: um convento no Largo de Roma e nele um galinheiro, que naquele mesmo dia, a pedido da religiosa, serviria de abrigo e descanso a quem até então só conhecia o abandono. Sessenta e sete anos se passaram e o galinheiro deu lugar a 1.005 leitos hospitalares e seus 70 ocupantes multiplicaram-se em 4,6 milhões de atendimentos ambulatoriais por ano. A providência divina e, por que não, o sonho de uma saúde gratuita e universal depositavam ali suas sementes – milagre que dez anos depois, em 1959, já atendia pelo nome de Obras Sociais Irmã Dulce, a OSID.
Não apenas pelo significado histórico, mas pela mensagem de esperança que recorremos a esse passado em busca de alento para o presente; para o que constatamos ser hoje a maior crise vivenciada em mais de meio século de existência das Obras do Anjo Bom. É bem verdade, as tempestades sempre fizeram parte de nossa história. Afinal, a luta de Irmã Dulce por uma saúde digna e acessível a todos nunca encontrou descanso. Caso contrário, como explicar, senão pela misericórdia, o milagre diário que é manter um dos maiores complexos 100% SUS do país, com duas mil pessoas atendidas por dia e mais de sete mil procedimentos ambulatoriais realizados diariamente, e ainda desafiar a correnteza ampliando a acolhida ao pobre, ao doente. Mas também é igualmente verdade que nunca estivemos em águas tão turbulentas. Uma crise sem precedentes agravada hoje por atrasos nos repasses e por quatro penosos anos sem reajustes no pagamento dos serviços prestados ao SUS, mesmo com aumentos anuais nos custos com material hospitalar, medicamentos, energia, entre outros. Na via dolorosa da saúde os números não fecham e 2016 já prenuncia um déficit operacional de R$18 milhões – seis milhões de reais superior ao déficit de 2015.
Um cenário também de angústia face ao desfinanciamento do SUS em âmbito nacional e às ameaças de redução em seu tamanho e de contingenciamento dos recursos destinados à pasta. Em tempos de caos na economia e de avanço do Zika Vírus e da Microcefalia, é preciso buscar alternativas de fortalecimento da saúde pública e não seu desmantelamento. Com famílias aterrorizadas pelo desemprego e, em consequência disso, fragilizadas pela perda dos seus planos de saúde, é urgente que trabalhemos pela revitalização do SUS, pois nele reside verdadeiro patrimônio e retaguarda do povo. Não à toa, é para ele que a população recorre nos momentos de crise e também nas situações de maior complexidade, resultando no crescimento das filas nas portas dos hospitais filantrópicos e públicos. É justamente no Sistema Único de Saúde que estão mais de 90% das cirurgias de coração, dos tratamentos oncológicos e dos transplantes realizados no país.
Sejamos, portanto, no Ano da Misericórdia, como aqueles 70 primeiros pacientes de Irmã Dulce, ao repetir o mesmo salto de fé quando a seguiram tal qual um navio segue a luz do farol a procura do porto seguro. Que em memória deles, que foram sentido e propósito na vida dela, nos posicionemos em defesa do SUS, das instituições de benemerência espalhadas pelo Brasil e do mandamento do “Amar e Servir” tão propagado pelo Anjo Bom da Bahia. E se preciso for, como um país de fé que somos, que continuemos a transformar galinheiros em hospitais, carroças em ambulâncias, sempre enxergando o direito a saúde com os olhos de Irmã Dulce: como aquela última porta, que não se pode fechar jamais.
Maria Rita Pontes
Superintendente das Obras Sociais Irmã Dulce