RETRATOS DO DULCISMO/José Carlos de Jesus Sobrinho: “Fui acolhido pelos filhos de Santa Dulce”
Era uma cena de um dia comum nas Obras Sociais Irmã Dulce (OSID). Nos braços do educador físico José Carlos de Jesus Sobrinho, o menino com múltiplas deficiências flutuava na piscina. Havia uma forte e silenciosa conexão entre o jovem morador do Centro de Acolhimento à Pessoa com Deficiência João Paulo II (CAPD) e o seu professor. O diálogo fluía, não com palavras, mas na luz dos sorrisos que iluminavam tudo em sua volta. Quem passava e os via ali, girando na água, em ondas criadas pelo afeto daquele ambiente inclusivo e acolhedor, não tinha dúvida de que a felicidade de um era a alegria do outro.
O tempo passou, a piscina já não existe, mas imagens carregadas de humanidade e poesia continuam a ser recriadas, de outras maneiras e por novos personagens. Na instituição fundada por Santa Dulce dos Pobres, esses flagrantes de beleza surgem com desconcertante naturalidade, em meio aos desafios cotidianos de uma entidade filantrópica. E costumam ser protagonizados por colaboradores, que em sua prática diária procuram reavivar os valores deixados por sua fundadora. Inspirados pelo “jeito Dulce de pensar, ser e agir”, eles vão construindo as narrativas que traduzem a essência da obra. Assim, surgem os “retratos do Dulcismo”, que de tão admiráveis merecem ficar emoldurados na memória da instituição.
Em 22 anos de Obras Sociais e 54 de idade, José Carlos – ou simplesmente Zé Carlos – já assistiu a muitas dessas cenas e, ao lado de seus “meninos” do CAPD e de seus colegas, cocriou outras tantas. Formado em Educação Física pela Faculdade Social da Bahia, vem procurando alinhar sua prática como professor aos valores da obra. E isso não passa despercebido. Ao contrário, Zé Carlos é uma dessas pessoas que se tornaram uma “unanimidade” quanto ao reconhecimento dos serviços prestados à instituição. Para ele, “o trabalho nas Obras é um divisor de águas” em sua vida. Mas para ver a riqueza dessa trajetória, iniciada no dia 2 de janeiro de 2002, é preciso percorrer as entrelinhas e revisitar seus bastidores. Nesse caminho de aprendizado com amor tem muita entrega. É sobre isso essa história.
Sincronicidade e aprendizado – Quem o vê no figurino do vibrante marcador da Quadrilha Terecoteco, “forrozeando” com os moradores do núcleo nas apresentações juninas, não imagina como foi difícil o início dessa jornada. Zé Carlos chegou às Obras Sociais como auxiliar técnico para ocupar-se da recreação dos moradores do antigo Centro de Reabilitação e Prevenção de Deficiências (CRPD), que na época acolhia 131 pessoas. “Vim para trabalhar com os que tinham dificuldade para dormir, à noite. A primeira semana foi horrível, porque eu não conseguia me aproximar deles. Pensei em desistir”, relata. Mas foi justo o momento mais conflituoso que trouxe a virada de chave. “Os próprios moradores começaram a se aproximar de mim. No início, eu tinha seis e na terceira semana, já tinha 21 moradores brincando na área. Por isso, digo que fui acolhido pelos filhos de Santa Dulce. Isso foi puro Dulcismo”.
Pronto, foi assim. E a partir daí, tudo virou sincronicidade e aprendizado. No CAPD, o jovem professor encontrou sua comunidade. O mais incrível é que, naquele lugar onde tantos meninos e meninas com diversos tipos de deficiências foram acolhidos – alguns pela própria Santa Dulce – Zé Carlos pôde acolher a si mesmo e reescrever parte de sua própria história. Justamente ele, que quando adolescente ficava um tanto envergonhado de sair com a irmã, uma das duas únicas pessoas com Síndrome de Down de Nazaré, sua cidade natal, foi abraçado pela família CAPD. Mais que isso. Adilson Campos, um jovem com Down, “filho” de Irmã Dulce, acabou se tornando seu filho do coração. “Meus familiares também o consideram assim”, relata o educador.
Adilson ensinou ao professor uma das lições mais belas: a grandeza da partilha. Aconteceu numa noite, após as atividades recreativas. Como de costume, Zé Carlos serviu o mingau, antes de os moradores irem dormir. Mas conta que tinha esquecido da jovem Roseni, que saiu e demorou a voltar: “Ela chegou e apontou que não havia tomado mingau. Fiquei sem saber o que fazer, pois já havia servido a todos. Foi quando Adilson, espontaneamente, partilhou seu mingau com ela. E assim, ele me mostrou que sempre existe algo que a gente pode fazer por alguém. O que posso dizer é que todos eles me ensinam sempre, desde o primeiro momento em que entrei aqui”, conclui.
Não é de se admirar que o Dulcismo – muito antes de ganhar os contornos do conceito como o conhecemos hoje – tenha virado este moço de ponta a cabeça. Foi um longo caminho, desde a adolescência em Nazaré, quando guardava uma foto de Irmã Dulce no caderno da escola, até tornar-se um colaborador de sua obra. “Caiu a ficha do Dulcismo, quando eu me dei conta de que estava na OSID para tocar o legado de alguém que eu já admirava muito, e de que a responsabilidade que eu tinha era imensa, pois eu estava aqui para cuidar dos filhos de Irmã Dulce”, reflete. Para Zé Carlos, tudo se resume em uma frase: “Amor ao próximo. Isso é a base de tudo o que Santa Dulce deixou; é a semente”.
Centro de amor – Ao longo desses 22 anos, alguns moradores do CAPD faleceram; outros foram reintegrados à família, graças aos esforços do Serviço Social da instituição. Atualmente, 69 pessoas, de ambos os sexos, moram na unidade. Assim como Adilson, hoje com 38 anos, menos de 40% têm alguma referência familiar. Os que moram no núcleo estão cercados de todos os cuidados – moradia, alimentação e saúde. A base do trabalho do centro, que conta com 92 funcionários (85 nas funções de cuidadores e monitores), é a promoção de sua autonomia e inclusão social. Com reverência a uma vivência de mais de duas décadas, Zé Carlos afirma que “o CAPD é um centro de amor; e amor que se emprega de várias maneiras, porque não vejo esse amor só em mim, vejo em muitos colegas. É a luz de Dulce que reflete em nós”.
Nesse ambiente de trocas afetivas, onde as flores do Dulcismo desabrocham até nos dias mais cinzentos, as trilhas – todas elas – são construídas pelo “caminho do coração”. Assim acredita José Carlos, que já inicia os preparativos para a nova temporada da Terecoteco, uma das atividades socioculturais que integram sua agenda de trabalho. O que o move é a mesma consciência solidária que o faz virar puxador de samba em janeiro para recriar o clima alegre da Festa do Bonfim, dentro dos muros da OSID, na tradicional Lavagem da Horta do CAPD; e que o faz também levar sua turma à praia, ao parque, teatro, cinema e eventos desportivos: amor. “Quando ouço alguém dizer para mim, que o que faço é a imagem do Dulcismo, me sinto tão feliz com isso... Porque é um reconhecimento; e não é para mim, mas para o trabalho, para eles. Pois o que eles me dão é muito bom e eu tenho que devolver. É isso que faz sentido”.