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RETRATOS DO DULCISMO / Iramaia Cruz do Amaral “A minha habilidade no trabalho de redução de danos vem do coração”

10 de March de 2025

Meio-dia. O almoço já estava no prato, quando o celular tocou: “Vem correndo, que Maria está com uma ratazana imensa dentro de uma quentinha”. Iramaia Cruz do Amaral, 45 anos, redutora de danos das Obras Sociais Irmã Dulce (OSID), largou tudo para atender a ocorrência nas imediações da instituição, no Largo de Roma. “Meu Deus! Cheguei lá e Maria estava alisando o rato. O bicho, completamente calmo, devia estar doente. Conseguimos trocar as embalagens – ficamos com a do rato e demos a ela uma quentinha com comida. Maria é uma pessoa muito cismada, você tem que ter um vínculo bom com ela para ela aceitar e comer”.

No relato de um instante na vida de Maria, uma mulher com um quadro agudo de saúde mental, há anos morando nas calçadas da Cidade Baixa, em Salvador e arredia a qualquer tipo de abordagem, Iramaia resume a complexidade do trabalho de redução de danos que desenvolve na OSID desde 2013. Até 2021, ela atuou como colaboradora do Centro de Convivência Irmã Dulce dos Pobres (CCIDP) – Maria é um case deste período – e, desde então, passou a integrar o quadro de profissionais do Centro de Acolhimento e Tratamento de Alcoolistas (CATA). 

Na unidade dedicada ao tratamento de alcoolistas na Bahia pelo Sistema Único de Saúde (SUS), 90% das tarefas que desempenha são semelhantes às que desenvolvia no CCIDP.  A lógica do trabalho é a redução de danos. Com esta expertise, Iramaia – ou simplesmente Maia – contribui para ações relevantes do CATA, como a articulação entre as UPAs e as Unidade Básica de Saúde, e entre os diversos dispositivos das redes SUS e SUAS (Sistema Único de Assistência Social) em benefício dos pacientes. Na interlocução com alcoolistas socialmente vulneráveis que buscam atendimento no CATA, ela conversa com os usuários sobre a importância do tratamento, encorajando-os a dar este passo, que para muitos é vital.

Dom do coração – A redução de danos é uma tarefa que exige comprometimento, paciência, perseverança e muita sensibilidade diante do sofrimento humano para abordar pessoas que vivem em situação de vulnerabilidade social. Na rua, tudo é muito intenso. Prevalecem as condições impostas em cada território, as ocorrências e seus desdobramentos, e as bruscas variações de humor dos que vivenciam tantas formas de violência. Sem contar as intempéries do tempo, a dor, a solidão e o medo – do conhecido e do desconhecido... E como se não fosse complexo, Iramaia faz tudo parecer simples quando diz: “Estamos no corre, tentando organizar a vida dessas pessoas”. De onde vem essa habilidade como redutora de danos? “Do coração. Esse jeito meu vem do coração”, diz sem hesitar.

Maia “é uma pessoa que abraça, que briga pelo usuário para além dos limites; é uma potência”, tal como a descreve sua liderança, Andrea Lima. É assim que o trabalho de redução de danos tem (e não só de Iramaia, mas de toda a equipe dedicada a esta função) uma entrega verdadeira. De sua parte, Maia traz experiências de vida que nas Obras vêm ganhando os contornos do Dulcismo – O jeito Dulce de pensar, ser e agir. Valores, como empatia, amor ao próximo, acolhimento à diversidade, compaixão e perseverança são essenciais na abordagem dos que estão em situação de rua e se tornam dependentes de substâncias psicoativas. “A gente chega para falar de redução de danos para essas pessoas, que são invisíveis para a sociedade. E o bom é que sempre veem a gente como Irmã Dulce; é o diferencial. Então, a gente fala sobre saúde, faz um acolhimento, sempre escutando para depois começar a interagir. Nós vamos várias vezes a um mesmo local até fazer um vínculo com elas”, relata Iramaia.

A redução de danos é um “trabalho de formiguinha”, mas que gera satisfação para os redutores. Quem vive nas bordas da sociedade costuma padecer com muitas doenças e a sofrer com a falta de acesso à rede de saúde. “As portas estão sempre fechadas para uma pessoa em situação de rua, mas indo com a gente, as portas se abrem. Então, quando consigo levar um usuário ao médico, ganho o meu dia”. Iramaia fica feliz também quando consegue encaminhá-los para que obtenham sua documentação (identidade e certidão de nascimento). “Um documento faz toda a diferença na vida dessas pessoas, porque sem documento são realmente invisíveis e com um documento podem tentar trabalhar. No caso de uma batida policial, sem documento é complicado. Então, através do nosso trabalho já trazemos uma luz para essas pessoas”.

Fonte de inspiração – Maia se vê como redutora de danos desde os 13 anos de idade. Chegou a fazer um curso com habilitação para técnica de enfermagem, mas a redução de danos bate mais forte em seu coração. “É onde me identifico e posso dar o meu melhor”, afirma convicta. Ainda adolescente, já desempenhava este trabalho na comunidade de Boiadeiro, onde ainda mora. Nem sonhava com o que hoje chamamos “Dulcismo” mas, sem saber, já vivia muitos desses valores cotidianamente. “Vou ajudando, fazendo favores. Sempre que me pedem: você pode fazer isso? Eu não digo não; digo: vou ver se posso”. Assim, quando entrou na OSID, no dia 1º de setembro de 2013, já foi para trabalhar com redução de danos. Na bagagem, a habilidade adquirida ao longo da vida e sua desconcertante disponibilidade para ajudar. 

Basta perguntar qual o seu sonho e Iramaia responde sem pensar duas vezes: “ajudar a tirar Maria da rua”. Maria é uma de suas filhas do coração. "Mãe Maia", como é carinhosamente chamada por muitas pessoas em situação de rua, foi ganhando filhos do coração pelas ruas da cidade de Salvador. Maia, em muitos casos, exerce uma espécie de “maternidade”. Não é apenas uma redutora de danos; torna-se a “mãe” de muitos sem vínculo familiar ou que estão longe de seus entes queridos. Um episódio, durante a pandemia, ilustra esse dom que vem do coração: Maia havia acompanhado um paciente do interior que faleceu no CATA. Junto à sua liderança e ao Serviço Social, ela articulou para que a prefeitura da cidade do paciente providenciasse o traslado do corpo. A mãe do falecido ficou tão grata que filmou o sepultamento e mandou o vídeo para expressar sua gratidão. É assim que, nos gestos mais simples dessa colaboradora da OSID, brilha a luz de Santa Dulce dos Pobres, sua fonte de inspiração.

Da Mãe dos Pobres, Iramaia guarda com carinho uma memória de infância. Tinha quatro anos e morava sobre palafitas, quando o pai a levou para ver Irmã Dulce e o Papa João Paulo II, em visita aos Alagados. Naquele “mar” de gente, Maia não conseguiu vê-la, mas acredita que recebeu suas bênçãos. Décadas depois, poder colaborar com a obra do Anjo Bom é uma dessas incríveis sincronicidades, que aprendemos a chamar de “Dulcidências”. “Acho que o afeto que tenho pelo próximo é o que Santa Dulce me inspira”, diz. É nisso que ela acredita cada vez que vai a campo, ao encontro dos invisibilizados pela sociedade. Iramaia encontra “no amor ao próximo” o mais poderoso redutor dos danos causados pela indiferença.

Assista ao vídeo acessando o link do YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=f7meZ6iqvTI&t=6s

RETRATOS DO DULCISMO / Iramaia Cruz do Amaral  “A minha habilidade no trabalho de redução de danos vem do coração”