Noventa anos de Irmã Dulce
24 de May de 2004
No dia 26 de maio Irmã Dulce completaria 90 anos. A trajetória da religiosa baiana, que tem na dimensão e sobrevivência de suas obras sociais sua face mais visível, revela uma personalidade muito mais complexa do que a da freira que foi declarada Serva de Deus pelo papa João Paulo II e se encontra em processo de beatificação pelo Vaticano. A abnegação e a coragem com que se dedicou aos pobres, doentes, oprimidos e excluídos foi radical e não se restringiu ao acolhimento.
Ao lado de sua fama de santidade persiste na memória dos que acompanharam sua história, a mulher que aliava o idealismo e a Fé a uma determinação e firmeza incansáveis, que não se detinha frente a nenhum obstáculo e superava dificuldades e incompreensões para salvaguardar a ação caritativa.
O destemor e a determinação, traços marcantes revelados quando ainda era menina e costumava atender aos mendigos que paravam em frente à sua casa – que passou a ser conhecida como ‘A Portaria de São Francisco' - a ajudaram a enfrentar críticas e oposições. Sua personalidade somada a identidade com o carisma franciscano, alimentado pela devoção a Santo Antônio, a levou a realizar peregrinações à invasão de palafitas dos Alagados, onde então já moravam os miseráveis da capital baiana. A assistência aos que eram tratados como parias pela sociedade fez com que passasse a ser chamada de “Anjo dos Alagados“. Irmã Dulce tinha um carinho especial pelos excluídos.
Amparada por sua missão, enfrentou a censura da conservadora sociedade baiana dos anos 50 quando decidiu fazer visitas aos detentos do presídio da Coréia (que ganhou esse nome por conta da guerra travada na época no país asiático), que só cessaram quando ela foi proibida de levar conforto espiritual, alimentos e remédios aos presidiários. A proibição gerou protestos da imprensa liberal baiana, que ficou a seu lado e estampou sua indignação em manchetes como a da edição do jornal A Tarde de 21 de junho de 1954: “Irmã Dulce não pode entrar na Coréia: onde os presos não têm direito à caridade”.
Muitas das mais de 50 mil pessoas que compareceram a seu funeral no dia 15 de março de 1992, dois dias após seu falecimento, foram prestar homenagem àquela que consideravam santa e também à corajosa visionária que foi pioneira em áreas como a ação social voltada para as classes trabalhadoras: Irmã Dulce, com apenas 22 anos, foi responsável pela criação em 1936 do primeiro movimento operário cristão da Bahia, isso décadas antes da eclosão, na era pós Vargas, dos movimentos trabalhistas.
Seu senso prático e administrativo, que concentrava habilidades de engenharia, planejamento e contabilidade, raramente exercidas pelas mulheres da época, são características também pouco conhecidas. Ainda na década de 30 fundou três cinemas, os Cines São Caetano, Roma e Plataforma, para subsidiar suas ações de assistência à classe operária e aos pobres e doentes, e, em 1939, inaugurou o Colégio Santo Antônio, escola pública voltada para os operários e seus filhos, no bairro popular de Massaranduba.
Nesse mesmo ano, Irmã Dulce invadiu cinco casas na Ilha dos Ratos, área localizada na Cidade Baixa, para abrigar doentes que recolhia nas ruas. A expulsão do local pelas autoridades fez com que ela peregrinasse por dez anos com seus doentes, pobres e excluídos até abrigá-los em 1949 no galinheiro do Convento Santo Antônio, que improvisou em albergue e que deu origem ao Hospital Santo Antonio, um dos núcleos de suas Obras Sociais que em 2003 realizaram mais de 2 milhões de atendimentos em saúde, assistência social e educação.